sexta-feira, 24 de novembro de 2006

Suicidário

Por Magela Oliveira

Era noite e chovia. Torrencialmente. Uma noite densa e úmida, quebrada em pedaços por relâmpagos que desciam impiedosamente da escuridão que a tudo envolvia. O vento, em rajadas furiosas, espremia-se pelas frestas de portas e janelas, uivando desesperadamente pelos longos corredores, contaminando com seu hálito gélido a atmosfera fúnebre daquele lugar.

Tudo era solidão e abandono naquele velho e carcomido casarão. Nem mesmo os fantasmas que costumavam assombrar aquele lugar se dignaram aparecer naquela noite tempestuosa.

Dentro da mansão, que ameaçava ruir a cada ribombar dos trovões, um homem solitário ponderava serenamente se não seria esta a noite ideal para morrer.

Velho como tudo que havia ali, acompanhado apenas da tênue e bruxuleante chama de uma vela, ouviu, entre estrondos e relâmpagos, um estalido seco e cortante, como o som produzido por alguém pisando na tábua do assoalho próximo à porta da sala onde ele estava. Um frêmito percorreu sua espinha e os pêlos do corpo se eriçaram diante da perspectiva de haver mais alguém naquela casa.

Virou-se, tremulo, segurando o castiçal com uma das mãos e, levantando-o divisou um vulto à sua frente. Contrariando o que indicava o bom senso, com passos hesitantes, aproximou-se e distinguiu um homem sobriamente vestido, de feições severas e postura rígida. Ficaram ambos se fitando por instantes até que um arrepio de pavor percorreu-lhe o corpo todo fazendo tremeluzir ainda mais a chama da vela que segurava.

Lá fora a tempestade rugia furiosa e açoitava com violência as antigas paredes da mansão que demonstrava evidentes sinais de fadiga e submetia-se derrotada às forças naturais. Com a ajuda implacável do vento a água vencia os obstáculos e escorria fria pelas paredes molhando as quinquilharias e memórias amontoadas ali por anos a fio.

Sem perceber a derrota de sua fortaleza, ele continuava paralisado olhando fixamente o invasor sem acreditar no que via. Estava, inacreditavelmente, frente a frente consigo mesmo.

Há muito se habituara a conviver com fantasmas que assombravam velhas casas abandonadas e consciências culpadas, mas nunca enfrentara o fantasma de si mesmo. Questionou intimamente quem seria o fantasma ali; Aquela aparição elegantemente vestida, de aspecto dominante e olhar confiante, ou um velho pálido e vergado pelo tempo, enrolado em um puído robe de chambre, amargurado pelo abandono e entediado pela solidão.

Olhou novamente para os olhos da assombração e enxergou seus olhos de muitos anos atrás, quando mirava o futuro com otimismo e esperança. Compreendeu que o fantasma estava ali para mostrar-lhe o que fizera com seus planos, com suas crenças, com sua vida, enfim. Para mostrar-lhe quem ele fora e no que se tornara.

Assim como a mansão, seus móveis e utensílios, ele também não pertencia mais a este tempo. Tornaram-se todos anacrônicos.

Virou-se decidido e caminhou até o velho móvel de cuja gaveta sacou um revolver e lembrou-se de uma frase que ouvira em um filme: Morrer não é importante. Importante é como você morre.

Estufou o peito e endireitou sua postura, ajeitou o robe da melhor maneira que pode e ergueu altivamente o queixo. Mais uma vez olhou para si mesmo, desta vez com desdém; Havia novamente assumido o controle.

A trémula luz da vela iluminava o rosto de um homem quase feliz quando ele puxou o gatilho.

Lá fora um trovão medonho sacudiu a escuridão e ecoou indiferente pela noite afora.

Antes que o projétil atingisse o palato ele sentiu o cheiro penetrante da pólvora e tombou ensangüentado no chão encharcado da mansão. Uma misericordiosa lufada de vento apagou a débil chama da vela e a paz, finalmente, voltou a reinar naquele lugar.

2 comentários:

Anônimo disse...

Muito bom o texto,Tigela. Você anda decorando o dicionário,né?

Anônimo disse...

Pô Magela, que negócio macabro! Estava esperando um final prá dar risada e vc me vem com uma tragédia dessa!!! VADERETRUM